domingo, 8 de abril de 2012

não entendEu

‘entender é parede, procure ser uma árvore’
[Manoel de Barros]

                Andei por adquirir o agradável hábito de rechear as caixas de e-mail de Matteo Ciacchi, o meu já parceiro daqueles bons-velhos textos a dez mãos, com aquilos nos quais mais ouso. Vez por outra vou lá puxar no pé dele, aperreá-lo por um feedback. Esse foi o mais recente. O texto nem me agrada taaaaaanto, ora veja, mas a resposta de Matteo ao recorrente questionamento ‘o que foi isso que eu fiz, hein?’ foi tão feliz que resolvi trazê-la na íntegra junto com seu objeto. Oh lá!!

Isso, Gustavo, é uma forma sonata do período romântico tardio - formalmente bem definida, com elementos episódicos não relacionados com o todo, grupos temáticos contrastantes porém relacionados, um desenvolvimento e uma coda com elementos dos grupos temáticos - e é na coda que há mais elementos da tonalidade extendida, quase atonal, um colorido harmônico incomum que dá uma cara completamente diferente aos motivos do tema. Se Schubert tivesse nascido um pouquinho mais tarde talvez ele tivesse composto alguma coisa parecida com isso. Escuta a última sonata pra piano que ele compôs: o primeiro movimento é bem parecido com isso aí.
De Matteo, por e-mail.




Olha.
Os barcos já vão zarpar.

Olha.

Sofro severamente de absurdo. Vinha outro dia a caminhar rua abaixo, mãos no bolso, coração ajeitadamente no peito, pés nos sapatos quando, de repente, algo me pus a assobiar. Ora, até aí nada demais, huh? Algo pus-me a assobiar pelos olhos. Ora, vejam só. Ou não vejam, huh, assobiem. Há-que muito ser-se absurdo para propor-se assim a algo. O fato é que não me propus. Algo me pôs, algo me pus. Assobiava pelos olhos. E a boca cheia de lágrimas-proto. Afora isso, continuava a caminhar tranquilamente abaixo a rua, os bolsos nas mãos, o peito ajeitadamente arranjado ao redor do coração, sapatos aos pés. Uma luz mínima de juízo sentido que restava em mim, porém, sentia-se severamente desconfortável com aquela situação. Já não tenho mais idade pra viver assim atravessado.

Caminhava um homem, eu, rua abaixo. Assobiava pelos olhos, trazia trancadas a boca milágrimas. Milagre. Eita! Sorte minha que ninguém parou a me cumprimentar. Sentei-me a um banco de praça qualquer. Bebi lágrima-a-lágrima, bebime. Respiro fundo, cessa a música. Ponho-me a andar.

Olha. Os barcos já vão zarpar.

Meus olhos servem de perfeita moldura as minhas rugas. Exceto quando assobiam Brahms. Segui seguindo rua abaixo, tudo nos trinques, nos conformes. O corpo perfeitamente envolto na roupa. As idéias perfeitamente enterradas sob os meus cabelos. Ainda os tenho, vera que pouco. Siga, eu. Eis-aí que meu mal vez mais uma me ataca. Ponho-me a caminhar aos pés de ponta. Pés de ponta!! Como bailarina fosse! Ora, mais que. Ora mais que!! Sincronizasse o movimento dos braços com o das pernas, esse homem eu era já quase uma pantera de televisor. Afeito aos absurdos que meu corpo me impõe, com exceção do mínimo luz que já me ainda resta. Bah. Paro. Res. Pir. o. Fffff. Quando respiro, gosto que o ar saia entre meus dentes da frente. Fffff. Fffff. Tem cura, doutor?

Zarparam os barcos. Olha.Olha.a

Continua eu ruabaixo. Já há-visot miahn caas. Grasaç a Desu! Fazi agluns mutnios qeu mues desdo naõ Parma de estlarar frenteiacmente. Timbalada nos meus dedos. Timbalada!! Estou quase vomitando um hino evangélico. Corremos eu e os meus frenéticos doigts em direção ao portão de casa. Trabalhosamente enfio as mãos no bolso em busca das chaves. Se as achar, provavelmente as derrubarei no chão, esses dedos que non-stop. Dito-feito. Chaves no chão, cu na mão. Se ainda há alguma coisa nas mãos, samba por entre os dedos. Samba. Haha.

Aperta os olhos pra ver os barcos.
Não vê mais.


4 comentários:

  1. caro Gustavo,
    sobreviver diante da ordem estabelecida é um desafio constante para os que tendem a destoar o coro dos contentes. Seu texto atinge o nervo dos que se incomodam com a ausência de balizas, tão caras à academia (vixi)! E percorrendo os caminhos sinuosos do não sentido, encontras o sentido que não se enquadra, que não se classifica, que não se ajoelha. eis então o melhor dos sentidos, aquele que não é porque já não dá sentido. No caminhar trôpego, o narrador-personagem segue descendo a rua - sentido? - incomodado, "atravessado", dos olhos lacrimejando assobios e da boca vomitando milágrimas. O que diabos esse sujeito tão inquietante sente? - eis-aí que meu mal vez mais uma me ataca - se questiona o leitor. Aí está o ponto de ligação mais profundo e viceral entre o autor que sangra e o leitor que transcende suas impressões nas imagens íntimas elaboradas no ato de sua leitura. Presto meu respeito, circunspecto à função prazeroza que me cabe de leitor, à peculiar forma de conduzir a tensão criada pelo personagem narrador e o leitor, absolutamente desconcertante e transgressora! Passo a passo, desconstruindo castelos - Continua eu ruabaixo. Já há-visot miahn caas. Grasaç a Desu! Fazi agluns mutnios qeu mues desdo naõ Parma de estlarar frenteiacmente. Transgrida sempre, caríssimo Gustavo! eu, particularmente, adormeço com as regras-sistemas que persseguem certa geléia geral de autores de nossa literatura contemporânea. A arte agradeçe e se engrandece! Wagner Ramos (seu seguidor do Facebook e trôpego leitor).

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  2. "Continua eu rua abaixo. Já há-visot (avisto) miahn caas (minha casa). Grasaç a Desu! (.) Fazi agluns mutnios qeu mues (Fazia alguns minutos que *sumiu") desdo naõ Parma de estlarar frenteiacmente. (estalar freneticamente "est(r?)e/constelar") Timbalada nos meus dedos. Timbalada!! Estou quase vomitando um hino evangélico. (ou católico barroco? ou missas de Beethoven, também românticas?) Corremos eu e os meus frenéticos doigts (dedos em francês... dedos franceses?) em direção ao portão de casa. Trabalhosamente enfio as mãos no bolso em busca das chaves. Se as achar, provavelmente as derrubarei no chão, esses dedos que non-stop. Dito-feito. Chaves no chão, (censored) na mão. Se ainda há alguma coisa nas mãos, samba por entre os dedos. Samba. Haha.


    ****

    "melodia, meio-dia, dia dia (a)dia"

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