segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

o homem que comia metáforas

‘tentei uma aventura lingüística’
[Manoel de Barros]


                E consegui! Há uns dois meses atrás, cutuquei com vara curta estes que são os braços dos meus abraços para que fizéssemos um poema a dez mãos. Somos Gustavo Limeira, Matteo Ciacchi, Marília Carolina, Candy Ferraz e Luíza Paiva. Minha idéia foi propor um tema-título-mote a mais quatro arquitetos de palavras e montar um poema em cinco partes, cada uma sendo o ponto de vista a sensação que este resolveu imprimir em versos. Em cada parte, vai o link do blog do respectivo poeta/escritor/vagabundo. Espero que gostem – e que façam pressão em Matteo para que ele retome os blogs em que costumava escrever! J


I [Marília]

O homem que comia metáforas
Era só sensações
Conquistava suas terras
Entrava e saía
Não dava satisfações
Ia embora levando em si
Toda a sentimentalidade que lhe fosse oferecida
Era tão altivo
Tinha nos olhos a pretensão
Nas mãos a bravura
No peito a coragem
E ia desgarrado, sempre em frente
Mas deixou que a tempestade
Levasse embora seu coração
E navegava num mar de lágrimas
Derramadas sobre o amor
Que escapava por seus poros
Esburacados pela dor navegável
Do sofrimento de ser barco
Flutuante em meio a chuva
E agora é só partida
Embarcado e sempre em frente
Na direção do infinito


II [Candy]

o homem comia metáforas para não viver são
o homem comia metáforas para viver sendo
sendo moço que pisa na lua
sendo lua que pisa no chão
engolia frases inteiras
e ainda pedia sobremesa
o homem comia metáforas para digerir a solidão


III [Matteo]

O Gargantua, por dentro era um abismo famélico
Buraco negro ansiando por ter alguma corzinha
E nessa fome anêmica achou estranhas cerejas de um bolo terminado.
Gargantua, leão aos cristões, foi enchendo o abismo
Como um coveiro selando existências.
Tridente na mão esquerda, cimitarra na direita
Um escudo sobre a mesa, e uma pá para a sobremesa
Começou pelo abismo, e ficou só a fome,
Mas por bem pouquinho tempo.
Continuou com o buraco negro, e ficou um estômago
Bem rosadinho e saudável.
Catou as cerejinhas e ficaram metáforas.
Depois de algumas mordidas, o escudo virou pirex
Tridente se rebaixou a garfo, a cimitarra uma faquinha daquelas de manteiga
A pá virou uma colher, e nem era de sopa
Comeu as metáforas todinhas, olhou pro lado
E tava naquela de sempre
Morgado


IV [Luíza]

Em um dia gelo de tristeza,
Encontrei um homem triste azul,
azul de fome. Acanhada,
mas empática, a ele perguntei:
- Perdoa-me a talvez indiscrição,
mas vejo no senhor uma fome,
e que não é de comida. –
Antes que eu pudesse algo mais dizer,
o homem, azul nostálgico, suspirou,
e me disse:
- Moça, a fome que vês está nos
meus olhos, no coração.
Bem queria eu um ardoroso e quente
vermelho, o ardor do amor. Moça,
em ver-te, lembrei-me duma outra
que certa amarela sem-graça tarde
perguntou-me do que eu sentia fome.
Mas a tola, tão cega, não foi certeira
como os teus olhos. Não soube ver
a fome que me tanto desnutria, que
tanto me molestava os sentidos.
Depois desta tarde, nunca mais comi
nada além da minha própria fome.


V [Gustavo]

cruas
geladas
fervendo
mal-passadas, faz favor
frescas
maduras
verdes
podres
no ponto!
bem-passadas, quase queimadas
queimadas, mesmo
em fatias
de bolo, com a mão
sem as mãos
com os olhos
com água, com pinga
com cerveja
descascadas
com semente, sem semente, som semente
com café e bolinhos
café com pão
bolacha, sim
no chão, no chão
na mesa, não
pouco açúcar, por favor
sal a gosto
em outubro, em dezembro
com guaraná
com cuba-libre, com Fidel,
à grega, à moda da casa
do jeitinho do chef
requentadas no microondas
pré-fritas
entupidoras de artérias
diestéticas, light, insight
com chá-mate.
com ki-suki, claro
das de lamber o beiço
com gosto de repolho ou de brócolis
defumadas, fumadas e embriagadas.

comia metáforas
e gozava.



terça-feira, 18 de janeiro de 2011

ora pro nobis ou à quoi ça sert #3

‘Aime-moi
Ne cherche pas plus loin
Surtout ne pense à rien
Aime-moi...’

[Henri Salvador - http://tinyurl.com/6ykhpo3]



                Chegou a hora de fechar minha série, ‘à quoi ça sert’, que comecei mês passado [http://tinyurl.com/2uwyus4]. A pergunta, como muitas que pululam nas mentes humanas, continua sem resposta. Os versos aí estão, só pra endossar o sabor doce da dúvida. Espero que gostem! J




quero estudar teu corpo, cada centímetro
cada porto, cada pêlo, cada beijo e cada sonho que porventura nele carregues
quero meus dedos correndo nos teus cabelos, nos teus textos
as metáforas das minhas unhas cravando nas tuas costas, no teu peito
só pra sentir o arrepio de janelas fechadas
o vento cantando lá fora, a gente cantando lá dentro.
as vestes, as vertigens aos pés, aos pés da cama, ao rés do mundo.
e só enfim dormirei sossegado, esgotado, do teu lado.
respirando juntos
graves, como convém a um deus e a um demônio,
amém.





sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

de um profundo

'Behind joy and laughter there may be a temperament, coarse, hard and callous. But behind sorrow there is always sorrow. Pain, unlike pleasure, wears no mask.’
[Oscar Wilde]


                Saudade é uma palavra intrigante, não? Sempre figurando entre as dez mais difíceis de se traduzir, é algo bem próprio da nossa língua. E como eu já andava escrevendo sobre um vizinho seu, o amor, aproveitei-me de umas conversas recentes [de saudades e saudadinhas], do ‘de profundis’ do Wilde, da poesia de Manoel de Barros e, mais profundamente, d’uma canção do Caetano, ‘Peter Gast’. Quem tiver a chance de ler um pouco sobre essa canção, não a perca, é no mínimo fascinante. Enfim, espero que gostem  J


lembro-me bem do que dizia aquele filósofo esquisito cujo nome esqueci
quando vinha tomar café e passar tardes fingindo de companhia nos meus pensamentos.
ele dizia assim:
não me invente de sair por aí emanoelando palavras, rapaz!
a cada palavra deu-se um pôr-de-som, que deve ser respeitado.
assim como as pessoas prezam por suas próprias madrugadas,
quem pode passar a vida a admirar as palavras e seus sons
deve desenhar nos olhos o apreço de seus pôres.
 - mas como assim?, eu perguntava, porque toda a vida me fantasiei de perguntas.
o filósofo tinha paciência para explicações, só não para pessoas. e explicava.
a palavra aplauso, por exemplo. a palavra aplauso rebomba nos lábios,
é estridente desde sua intenção.
aplauso tem hora e lugar, o filósofo dizia, mas rebomba sempre, desde a alma da palma.
e pra cada palavra que eu me arvorasse de perguntar, o filósofo me apontava seu pôr-de-som.
a palavra canção, que se põe na garganta dos baianos
a palavra mulher, que se põe na boca dos que amam
a palavra justiça, que se põe no olho dos que não vêem
 - e a palavra saudade?
saudade é uma palavra rasteira, ele disse.
é rasteira e padece de não ter os pés no chão. 
o filósofo disse que não tratava desta palavra, pois que mal lidava com silêncios.
o pôr-de-som desta palavra era a saudade dele mesmo.
a saudade medieva os pôres-de-som.
a palavra aumentativa a dor dos homens.

o filósofo nunca mais voltou.



segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

fotografei o sobre

‘então quer dizer que o amor é mesmo sem caráter?
sim – sim – sim
tem que ser assim’
[Tom Zé]


                Até tuitei hoje que devo estar doente de poesia [http://tinyurl.com/45qbzfh]. Uns acham que sim [http://tinyurl.com/4csnag3], outros que não [http://tinyurl.com/477a6dh], e cada um tem seus motivos e argumentos. Como eu disse logo em seguida, é uma dessas doenças gravíssimas que a gente escolhe não tratar [http://tinyurl.com/4gjwsxt]. Esse poema é de hoje!, e sangrei-o logo depois de assistir ‘Só dez por cento é mentira’, uma desbiografia cinematográfica do meu broder Manoel de Barros [http://tinyurl.com/4wavvh3], e o título que dei a ele vem de um poema deste pantaneiro, chamado ‘O Fotógrafo’. Vou parar de pôr mil links e ir logo pro poema, né? Espero que gostem.


não é sobre amor, é sobre pessoas.

uma das coisas que mais odeio nesse tipinho, pessoas,
é essa mania de inviabilizar o amor.
explico:
não precisei ler camões, são paulo, shakespeare
nem vinícius de moraes, muito menos drummond
pra chegar ao amor.
 - li foi muito manoel de barros, que é pra desentender, pra deschegar -
e essas pessoinhas, ah!, esculpindo um ideal com toneladas de adjetivos
impossível, perfeito, ardente, cor-de-rosa-e-verde-e-rosa.
bah!
amar é como desconstruir o pré-fabricado pra artesanar sua propritude.
é pra gritar na noite, correr no sonho, deitar no verso e transar sobre as estrelas.
chega de tanto melindre, chega de tanta purice no lirismo.
lirismo tem que ser sujo de humanidade
e humanidade tem que ser suja de palavras.
por tanto, monsieur, não me venha com queijo e goiabada
pois que é hora já de uma lapada de cachaça.

não é sobre pessoas, é sobre amor.



terça-feira, 4 de janeiro de 2011

fala de faca ou à quoi ça sert #2

“L’amour est un oiseau rebelle
que nul ne peut apprivoiser
et c’est bien en vain qu’on l’appelle
s’il lui convient de refuser”
[Georges Bizet - http://tinyurl.com/67pd9o]


                Comentei um tempo desses da capacidade da língua francesa de tornar tudo um pouco mais... agradável ao ouvido. Não sei se são os elles ou os erres ou a beleza da poesia, mesmo, mas ela chega a ser quase tão bonita quanto o nosso brasileiro (é, essa língua que a gente fala). Por isso que venho escolhendo canções em francês pra introduzir os poemas desta minha ‘série’ [http://tinyurl.com/2uwyus4]. O título, ‘fala de faca’, vem dos versos de uma canção de Pedro Osmar, ‘Serrote’. Espero que gostem! J


o amor é navalha cega, enferrujada
rima ultrapassada
adentra o coração macio e o coração bruto
sem poesia, sem discrição
prosa caótica, e os versos jorrando das artérias
adentra o corpo dos justos, dos injustos
sem cerimônias, sem meias palavras
baile de barro, a bacante, o redemoinho
adentra a alma dos homens
sem nexo, sem conserto
já quaisquer coisas loucas dentro que não havia
a alma é um sertão, a alma é o mundo.




sábado, 1 de janeiro de 2011

três hi-caos

Nos dias quotidianos
É que se passam
Os anos

[Millôr Fernandes]


                Tudo novo, de novo. Queridos & queridas & possíveis leitores, quis saudar o 1º de Janeiro com uma postagem que renovasse uma vibe de 2010, os haikais [http://tinyurl.com/2eqljfe].  Sempre me encantou esta forma minimalista e tão carregada de significado de fazer poesia, salvem os japoneses!, e me aventurei novamente a sangrar um pouquinho do que me vem passando nas veias dentro desta perspectiva. Espero que gostem!
                Ah, um feliz ano novo. From the bottom of my heart, espero que o 2011 de vocês traga o melhor que poderia trazer. E muita poesia, sim, que a gente vai levando o resto.



I
e foi tudo tão rápido
que quando havíamos acabado
meu beijo ainda escorria da tua boca.


II
brincando de paixão nos teus cabelos
encontro mil nós, mil rimas e enredos
e entendo que poesia é isso mesmo.


III
assobio o teu nome pela estrada
nem a lua, nem o vento, nem a estrela
só a saudade pra varar a madrugada.